quinta-feira, 21 de junho de 2012

Amaciante

Mais um trecho de "Sanidade":

Ando controlada por sonhos. Fico alucinando pelos meus caminhos usuais para suportar a dor dos últimos dias. Invento novas profissões, novos amigos, um novo visual , um novo namorado, uma vida completamente nova e excitante. A vida real só é completamente excitante nos primeiros minutos de um acontecimento novinho em folha. Um daqueles fatos deliciosos que mudam nosso olhar para a vida, pequenos encontros que deixam tudo diferente. Por isso, todo dia escolho viver esses momentos, ando pelas ruas sentindo o que sentiria com um cabelo completamente novo, uma tatuagem no ombro, trabalhando em uma peça maravilhosa ou no primeiro dia de namoro com aquele cara incrível. Não sei por que, mas esses sonhos acordados me fazem alucinar com os gestos mais simples.
Ontem, ao voltar para a casa de ônibus estava lendo “Memórias de minhas putas tristes” de Gabriel García Marquez . Não sei se foi a atmosfera da história, mas algo simples e mágico aconteceu. Um homem de voz grossa pediu licença para sentar ao meu lado, continuei lendo o livro até que senti um cheiro que me desconsertou inteiramente. Sua camisa cheirava sabão em pó e amaciante, aquele cheiro delicioso e aconchegante que sentimos quando acabamos de pegar uma roupa de cama limpa. Por alguns minutos só conseguia pensar naquela camisa, o tecido emaranhado pelo cheiro de limpeza, cheiro de casa. Me imaginei deitada no peito daquele homem sentindo cada fibra daquela camisa, aspirando o cheiro e buscando prendê-lo para sempre no meu pulmão, um modo de guardá-lo comigo.
Começando a acariciar sua barriga, tirei a camisa lentamente e aspirei a mistura deliciosa de amaciante e suor. Aquele homem tinha cheiro de lar, doce lar, cheiro de cama, cheiro de aconchego. Por absurdo que pareça, esses pensamentos me excitaram subitamente, sem que eu conseguisse segurar alguns suspiros baixos e ligeiras mordidas nos lábios. Eu mantinha meus olhos fixos no livro para não correr o risco de destruir minha ilusão. Não queria ver seu rosto, o homem que eu queria não tinha rosto, mas tinha aquela mão morena que estava a minha frente apoiada no ferro do banco da frente. 
Ele se movimentou e eu percebi que iria descer no próximo ponto. Tive então que olhar para seu rosto, minha consciência me dizia que não podia ter vivido aquele momento com um homem sem face. Tentei uma vez, mas sem coragem, voltei meus olhos para o livro. Ele enfim se levantou e eu fui obrigada a olhar o rosto do homem que tinha me excitado apenas com seu cheiro. Era bonito, uns 30 anos, moreno, cabelo curto enrolado e barba rala. Estava voltando para casa do trabalho com uma mochila, cara de pai de família. Sua filhinha já tinha ido dormir e sua mulher o esperava para requentar o jantar. Ele tinha cheiro de casa, ele tinha gosto de família, de sonho. Ele não era ninguém sem aquele cheiro. Seu cheiro foi meticulosamente escolhido pela sua amada mulher, que foi ao supermercado no início da semana e escolheu aquela marca de amaciante. Mal sabia ela que juntamente com o sabão em pó e com o suor de um dia de trabalho, aquele amaciante era, sem dúvidas, afrodisíaco. No sábado de manhã, ela lavaria cantando aquela mesma camisa, que nunca carregou nenhuma essência minha.

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